Número: 0007073-21.2020.8.08.0035
Classe: PROCEDIMENTO COMUM CÍVEL
Órgão julgador: Vila Velha – Comarca da Capital – 6ª Vara Cível
Última distribuição: 29/04/2023
Valor da causa: R$ 20.000,00
Processo referência: 00070732120208080035
Assuntos: Obrigação de Fazer / Não Fazer
Segredo de justiça? NÃO
Justiça gratuita? NÃO
Pedido de liminar ou antecipação de tutela? NÃO
Tribunal de Justiça do Estado do Espírito Santo
PJe – Processo Judicial Eletrônico
Partes Procurador/Terceiro vinculado
IGREJA CRISTA MARANATA (REQUERENTE) ISAIAS DINIZ NUNES (ADVOGADO)
SAYMON COSTA GOMES CRUZ (REQUERIDO) JOAO ROBERTO ROCHA (ADVOGADO)
04/12/2024 13:07 Sentença
Poder Judiciário do Estado do Espírito Santo
6ª Vara Cível do Juízo de Vila Velha, Comarca da Capital
Autos n.º 0007073-21.2020.8.08.0035
Procedimento comum cível em fase de conhecimento (7)
Requerente: Igreja Cristã Maranata
Requerido: Saymon Costa Gomes Cruz
SENTENÇA
Ação recebida segundo o procedimento comum cível do art. 318 e seguintes do CPC.
Alegou-se na petição inicial, em apertada síntese, os seguintes fatos: QUE o requerido mantém conta na rede social Facebook com o intuito de propagar a intolerância religiosa, atentar contra o sentimento religioso da igreja, seus líderes e fiéis, realizando ataques que maculam a imagem da requerente.
Pede-se que o requerido seja condenado a: a) retirar as mensagens postadas em sua rede social (conforme links disponibilizados no item 9 da inicial – fl. 07) e abster-se de realizar novas publicações em sua página do Facebook que ofendam sua imagem, seus líderes e membros, seja por meio de texto, imagem ou vídeo; b) publicar a decisão final de mérito em sua página do Facebook, pelo prazo de 90 dias, sob pena de multa diária no valor de R$ 1.500, mil e quinhentos reais), e retratar-se, esclarecendo a todos os seus seguidores que as acusações que publicou são inverídicas; e c) efetuar o pagamento de indenização por danos morais no valor de R$ 20.000,00 (vinte mil reais), corrigido monetariamente a partir do ajuizamento da ação.
Decisão proferida à fls. 90 deferindo a tutela de urgência e determinando ao requerido a retirada, no prazo de 48 horas, de todos os comentários por ele feitos em que mencionava a requerente, se abstendo de realizar novos comentários, sob pena de multa diária no valor de R$ 100,00 (cem reais), até o limite de R$ 20.000,00 (vinte mil reais) a ser revertida em favor da requerente.
Citação realizada, de forma pessoal, conforme fls. 104.
Embora a parte requerida tenha sido pessoalmente citada por mandado, apresentou contestação fora do prazo legal, sendo esta, portanto, intempestiva (fls. 149), tornando-se, por isso, revel, na forma do art. 344 do CPC.
Em sede de contestação (fls. 111-39), disse o requerido, em resumo: QUE não se sustenta a pretensão inicial nos moldes em que fora proposta; QUE a requerente já foi alvo de investigação pelo Ministério Público; QUE foi Obreiro na Igreja requerida por mais de 10 (dez) anos e decidiu abandonar a instituição devido a situações negativas em que ela estava envolvida; QUE realizou as publicações por entender que elas eram de interesse público; QUE em suas redes se manifestou com urbanidade e sem mencionar o nome da requerente; QUE não prega contra a religião, mas apenas critica a postura da Igreja diante de determinadas circunstâncias, seus dogmas e rumos que em sua opinião a instituição teria tomado incorretamente; QUE não houve violação à liberdade de crença e à imagem da reclamante; QUE a requerente litiga de má-fé, promovendo diversas ações judiciais (fls. 134-8), com objetivo de criar obstáculos às manifestações de pensamentos contrárias às doutrinas e práticas teológicas da instituição, tendo as referidas ações, em sua maioria, sido julgadas improcedentes ou arquivadas.
Houve réplica oportunamente apresentada.
Decisão de saneamento proferida no id 43894348, oportunidade em que o processo foi saneado e admitida a produção de prova oral, além de prova documental suplementar.
Audiência de instrução realizada no id 45682333, oportunidade em que ambos os litigantes prestaram depoimento pessoal e houve a inquirição de duas testemunhas.
Encerrada a instrução, as alegações finais foram substituídas por memoriais, apresentados pela requerente no id 46189414 e pelo requerido no id 47426100.
Autos conclusos para julgamento. É o breve relatório. Decido.
O julgamento da lide exige a análise sobre os fatos relatados na petição inicial, especificamente quanto à caracterização do ato ilícito referido na inicial, como causa bastante para justificar a responsabilidade civil da parte requerida.
A discussão das partes envolve conflito entre o direito à liberdade de expressão do requerido e o direito à proteção da honra e imagem da parte autora, uma instituição religiosa de relevante expressão no cenário nacional.
A questão colocada em Juízo exige a análise sobre as publicações do réu, em especial se ultrapassaram os limites da liberdade de expressão e configuraram abuso de direito, passível de responsabilização por danos morais.
Conforme relato da petição inicial, as postagens realizadas pelo requerido que ensejariam o controle judicial foram as seguintes:
“O Requerido alega, de maneira puramente ofensiva, que os ensinos da Requerente não têm base na Bíblia. Afirmou ainda que a Doutrina da Requerente foi inventada para aprisionar mentes, as cauterizando.
O Requerido alega, de maneira puramente ofensiva e irônica, que somente pastor na icm ouve a voz do Espírito Santo? E os demais? Será que ouvem Baal?
O Requerido alega, de maneira puramente ofensiva, que o Presidente da Requerente é herege, pratica a bibliomancia, prática ocultista, pra saber se deveriam dar um simples café da manhã para os seminaristas.
O Requerido alega, de maneira puramente ofensiva, que a Requerente dissemina heresias abomináveis, as quais nunca foram praticadas por homens de Deus. Indiretamente alega que os pastores da Requerente são corruptos e que mesmo assim continuam no ministério da palavra.
O Requerido tece comentário puramente ofensivo contra o fundador da Igreja Cristã Maranata (não discriminado na inicial).
O Requerido tece comentário puramente ofensivo contra o fundador da Igreja Cristã Maranata (não discriminado na inicial).
O Requerido tece comentário puramente ofensivo afirmando que os membros da ICM inventam números para atrair mais fiéis”.
Os fatos imputados ao requerido e que foram discriminados na petição inicial em relação às publicações acima destacadas, podem ser interpretados em duas perspectivas distintas, cada qual com sua consequência (independente de se tratar de entidade religiosa ou não), embora ambas as circunstâncias sejam provenientes do mesmo ressentimento e decepção, quais sejam:
[A] publicações com ênfase apenas na “diáspora e proselitismo”, as quais devem ser interpretadas dentro de um contexto sentimental que o ex-membro passa a nutrir pela entidade religiosa que antes integrava, mormente em se tratando de afastamento amargurado e lastimoso, quando, com base nesta premissa, passa a questionar, ainda que raivosamente, as práticas anteriormente adotadas, com o objetivo de convencimento de outras pessoas a respeito de sua atual interpretação dos fatos e doutrinas religiosas que só agora julga corretamente interpretadas; e
[B] publicações com ênfase também na “diáspora e proselitismo”, mas, sobretudo, agravadas com o nítido e doloso propósito de caluniar a entidade que anteriormente integrava (religiosa ou não) atribuindo-lhe falsamente o cometimento de crimes (sem provas e/ou julgamento competente pelo Poder Judiciário) ou de atos de mesma gravidade.
A respeito da primeira qualificação interpretativa, registro como fundamento, o julgamento proferido pelo STF no Recurso Ordinário em Habeas Corpus 134.862/BA (MPF × Jonas Abib):
«[…] 4. No que toca especificamente à liberdade de expressão religiosa, cumpre reconhecer, nas hipóteses de religiões que se alçam a universais, que o discurso proselitista é da essência de seu integral exercício. De tal modo, a finalidade de alcançar o outro, mediante persuasão, configura comportamento intrínseco a religiões de tal natureza. Para a consecução de tal objetivo, não se revela ilícito, por si só, a comparação entre diversas religiões, inclusive com explicitação de certa hierarquização ou animosidade entre elas. […] 8. Conduta que, embora intolerante, pedante e prepotente, se insere no cenário do embate entre religiões e decorrente da liberdade de proselitismo, essencial ao exercício, em sua inteireza, da liberdade de expressão religiosa. Impossibilidade, sob o ângulo da tipicidade conglobante, que conduta autorizada pelo ordenamento jurídico legitime a intervenção do Direito Penal […] (STF, 1ª Turma, RO em HC 134.682/BA, rel Min Edson Fachin, julgado em 29/11/2016)»
A respeito da segunda qualificação interpretativa, registro como fundamento o julgamento proferido pelo STF quanto ao Tema de Repercussão Geral n.º 995:
«1. A plena proteção constitucional à liberdade de imprensa é consagrada pelo binômio liberdade com responsabilidade, vedada qualquer espécie de censura prévia. Admite-se a possibilidade posterior de análise e responsabilização, inclusive com remoção de conteúdo, por informações comprovadamente injuriosas, difamantes, caluniosas, mentirosas, e em relação a eventuais danos materiais e morais. Isso porque os direitos à honra, intimidade, vida privada e à própria imagem formam a proteção constitucional à dignidade da pessoa humana, salvaguardando um espaço íntimo intransponível por intromissões ilícitas externas […] (STF, Tese de Repercussão Geral, Tema n.º 995, RE 1075412, relator Min Marco Aurélio, relator designado Min Edson Fachin, julgamento: 29/11/2023, publicação: 08/03/2024)»
Pois bem, justamente por isso, entendo que as publicações discriminadas na petição inicial permitem seu fracionamento em dois grupos, situando-as conforme estejam na primeira ou segunda qualificação.
Nesse sentido, e com devida vênia à requerente, a totalidade das publicações referidas na inicial têm por fundamento a simples “diáspora e proselitismo” de natureza meramente religiosa e interpretativa, desprovidas do agravamento calunioso ou equivalente.
No presente caso, o réu, ao publicar críticas à Igreja Cristã Maranata cujo fundamento seja o rancor, ressentimento e decepção, proveniente de diáspora religiosa e proselitismo, sem agravamento calunioso ou equivalente, exerceram o direito de livre manifestação.
As postagens, nessa condição, expressam descontentamento com práticas internas da Igreja ICM, apontando falhas que, segundo o entendimento particular do réu, comprometeriam a integridade da instituição e seus líderes.
Essa crítica, por sua natureza, insere-se no âmbito do interesse público, dada a projeção social e a relevância que a parte autora possui no cenário religioso nacional e internacional.
Como destacado anteriormente, o exame das publicações (não caluniosas, nem equivalentes) discriminadas na petição inicial revela que, embora tenham sido feitas em linguagem contundente e até sarcástica, elas refletem uma experiência pessoal e um ponto de vista crítico sobre práticas da instituição, ainda que visível o ressentimento e rancor do requerido.
Além disso, deve-se considerar que críticas direcionadas a instituições públicas ou privadas com papel social relevante – como no caso de uma organização religiosa de grande alcance – não só são esperadas, como devem ser protegidas, desde que realizadas dentro dos limites da razoabilidade.
A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) reforça que a liberdade de expressão abrange opiniões desfavoráveis, duras ou provocativas, quando destinadas ao debate público e à busca por transparência, sem que isso implique, automaticamente, em ofensas à honra objetiva.
Nesse sentido, confira-se o precedente do STF que, embora não contenha absoluta identidade de fato-base, é suficiente para delimitar os limites da liberdade de expressão:
«[…] 1. A Democracia não existirá e a livre participação política não florescerá onde a liberdade de expressão for ceifada, pois esta constitui condição essencial ao pluralismo de ideias, que por sua vez é um valor estruturante para o salutar funcionamento do sistema democrático. 2. A livre discussão, a ampla participação política e o princípio democrático estão interligados com a liberdade de expressão, tendo por objeto não somente a proteção de pensamentos e ideias, mas também opiniões, crenças, realização de juízo de valor e críticas a agentes públicos, no sentido de garantir a real participação dos cidadãos na vida coletiva. 3. São inconstitucionais os dispositivos legais que tenham a nítida finalidade de controlar ou mesmo aniquilar a força do pensamento crítico, indispensável ao regime democrático. Impossibilidade de restrição, subordinação ou forçosa adequação programática da liberdade de expressão a mandamentos normativos cerceadores durante o período eleitoral. 4. Tanto a liberdade de expressão quanto a participação política em uma Democracia representativa somente se fortalecem em um ambiente de total visibilidade e possibilidade de exposição crítica das mais variadas opiniões sobre os governantes. 5. O direito fundamental à liberdade de expressão não se direciona somente a proteger as opiniões supostamente verdadeiras, admiráveis ou convencionais, mas também aquelas que são duvidosas, exageradas, condenáveis, satíricas, humorísticas, bem como as não compartilhadas pelas maiorias. Ressalte-se que, mesmo as declarações errôneas, estão sob a guarda dessa garantia constitucional. 6. Ação procedente para declarar a inconstitucionalidade dos incisos II e III (na parte impugnada) do artigo 45 da Lei 9.504/1997, bem como, por arrastamento, dos parágrafos 4º e 5º do referido artigo (STF, ADI 4451, Órgão julgador: Tribunal Pleno, Relator(a): Min. Alexandre de Moraes, Julgamento: 21/06/2018, Publicação: 06/03/2019)»
Portanto, reconheço que os comentários e publicações discriminados na petição inicial, embora rudes e até certo ponto, indelicados, em uma análise contextualizada, não se mostram suficientes para justificar a intervenção judicial pretendida.
Ao concluir o julgamento, portanto, não reconheço que as razões apresentadas pela parte autora sejam suficientes para autorizar um julgamento que lhe seja favorável.
Sendo assim, e em face das razões expostas, ao julgar o processo, com resolução de mérito, nos moldes do art. 487, inc. I, do CPC:
[1] REJEITO os pedidos iniciais, revogando a medida liminar anteriormente deferida.
[2] Nos termos do art. 85, §§ 2º e 6º do CPC, condeno a parte requerente ao pagamento das custas e despesas processuais, bem como em honorários advocatícios fixados em dez por cento (10%) sobre o valor da causa, com correção monetária incidente a partir do ajuizamento (STJ, Súmula n.º 14) e com juros (taxa legal) contados do trânsito em julgado do julgamento definitivo (STJ, precedente do AgInt nos EDcl no AREsp n. 2.307.301/PR, relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 20/5/2024, DJe de 23/5/2024).
Publicação e registro com o lançamento da assinatura eletrônica.
Intimem-se.
Providências finais, posteriores ao trânsito em julgado:
[A] as custas remanescentes, complementares e finais devem ser recolhidas em 10 (dez) dias, a contar do trânsito em julgado, sob pena de sua inscrição em dívida ativa (CNCGJ, art. 296, inc. II);
[B] decorrido o prazo de dez dias sem o devido recolhimento das custas processuais remanescentes, o Chefe de Secretaria informará à Fazenda Pública Estadual, independentemente de determinação do Juiz, e promoverá o arquivamento do processo (CNCGJ, art. 296, § 2º);
[C] os autos findos serão arquivados definitivamente após o(a) Diretor(a) de Secretaria informar que as custas foram integralmente pagas ou que foi dada ciência da inadimplência à Fazenda Pública Estadual, salvo hipóteses de dispensas legais (CNCGJ, art. 423); e
[D] inexistindo ato processual pendente ou postulação relevante de alguma das partes, fica desde já autorizado o arquivamento, competindo à Secretaria verificar as pendências, encerrando eventuais alertas do sistema e lançando a movimentação correspondente (CNCGJ, art. 219).
Vila Velha/ES, data registrada no sistema.
Manoel Cruz Doval
Juiz de Direito
Documento assinado digitalmente
gab/mcd/